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Aquela casa não era sem sombra de dúvidas uma casa velha e vulgar. Era um pouco mais do que isso, na verdade. Um paraíso aos olhos de admiradores de arte e uma boa razão para fazer inveja aos menos telentosos.
As frágeis e sábias paredes não chegavam para tantos quadros ali expostos. No chão iam-se amontoando mais pinturas, umas frescas, outras mais antigas, mas todas que faziam Joana parar para observar com atenção a beleza e autencidade das obras. No canto da ampla sala encontrava-se pousado um cavalete junto a uma pequena mesa com algumas ferramentas de pintura e mais telas por cobrir.
Aquele espaço já não tinha mais por onde lhe pegar. Estava completamente sobrecarregado e desorganizado. A secretária junto à porta da entrada encontrava-se repleta de papelada solta e desarrumada e de blocos de notas rabiscados. Mas o que chamou mais à atenção de Joana foi o lindo piano de cauda junto da pequena janela poeirenta. Tão brilhante e majestoso ocupava quase metade daquela sala de estar.
- Aposto que além de pintor foi um grande músico. – disse Joana passando a ponta dos dedos nas teclas pretas e brancas tão limpas e polidas que nem as pratas da raínha de Inglaterra.
O homem arrasta uma gargalhada sonora e aproxima-se do local. – Não, eu nunca fui lá muito bom músico. Mas gostava muito de ter sido.
- Nunca teve oportunidade de aprender? – pergunta Joana.
- Não, falta de talento mesmo! – responde ele a rir. – Digamos que não tenho queda para os acordes e as notas.
Joana achou estranho a sua reacção. Como é possível conseguir rir-se daquela maneira mesmo não tendo realizado o seu sonho por falta de capacidade? Certamente a pintura realizava-o por completo.
- Vamos lá despachar isto? - pergunta ele pegando no poster novamente.
Joana assentiu com a cabeça e seguiu-o até à sala ao lado.
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Carla já tinha tentado ligar-lhe para o telemóvel mil e uma vezes chegando depois à conclusão que a micro-geringonça da sua filha estava perdida no meio das almofadas do sofá. Como era possível que Joana não avisasse sequer que não ia almoçar a casa? Bom, o pior foi ter saído sem alguma explicação. Sem ter qualquer maneira de contactar com Joana, Carla ficou por servir o almoço para Sofia e esperar mais um pouco.
- Mãe, e se fosses à procura dela?
- Vamos esperar mais um pouco. Agora come. – disse ela espreitando pela janela mais uma vez.
- Acho estranho uma coisa... – diz Sofia. – porque é que ela levou o meu poster?
Carla olhou para a filha. – Que poster?
- Aquele que eu tinha na parede do meu guarda-fatos! O que compramos numa feira há uns meses atrás. – responde Sofia sem tocar na comida.
- Tens a certeza que ela o levou?
- Sim. Antes de saír de casa ele estava lá. Quando cheguei tinha sumido. – explicou Sofia.
- É estranho... – concluiu Carla – Vamos esperar que ela volte.
- E se ela não voltar?
- Come a massa, Sofia!
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Joana ficava cada vez mais surpreendida com aquele pequeno homem. Não existia canto algum naquela casa sem estar preenchido com algo de interessante e curioso para a rapariga. Aquela divisão era um pouco mais pequena e escura que a anterior mas igualmente agradável. No centro estava uma mesa comprida e larga sem cadeiras. O velho entra por uma porta ao fundo da sala e volta a saír com um monte de ferramentas e algumas tábuas já devidamente cortadas e trabalhadas, como se já tivesse tudo preparado para receber e ajudar Joana. Pousa tudo em cima da mesa e volta a entrar na arrecadação.
- Isso vai demorar muito? – pergunta Joana sentando-se no banco de rodar encostado à parede.
- Não muito. Tenho tudo em mente, não se preocupe. – Responde-lhe ele pousando mais outra tábua em cima da mesa.
- Tenho a certeza que depois disto ficarei a dever-lhe muito. - disse Joana.
- Não, menina, eu é que ficarei a dever-lhe muito mais pela companhia e alguma ocupação que me está a proporcionar neste momento. – retorquiu o homem olhando-a.
Joana ri-se. – Trate-me por Joana por favor.
O senhor sorri e no fundo daquela sala escura Joana viu seus olhos brilharem de novo. – Está bem, Joana.
A rapariga fica de novo aparvalhada. Estava à espera que ele fosse dar o seu nome também e em vez disso ficou com um sorriso patético nos lábios enquanto continuava os seus afaseres.
- Então o senhor já trabalhou numa loja de molduras? – perguntou Joana metendo conversa enquanto assistia ao homem a trabalhar no seu poster.
- Sim, mas não muito tempo. Foi quando eu era novo, precisava de algum dinheiro e aceitaram-me numa pequena loja de fazer arranjos em quadros e coisas assim. Mas nada de especial. Eu era um mero empregado mas deu-me alguma formação nestas coisas, e o que aprendi lá serviu para alguma coisa no futuro como pode ver.
- Parece que tem muitos anos de experiência! – observou Joana.
- É como lhe digo, ganhei mais habilidade recentemente com os meus próprios quadros do que quando trabalhava nessa loja. Eu era apenas um miúdo desajeitado e trapalhão que precisava de alguns trocos! – disse ele a rir-se. – Ao fim dum mês tive de procurar outra coisa para fazer. O dono daquilo morreu e como não tinha família o estabelecimento fechou. Ele era uma pessoa amável e muito inteligente, mesmo não tendo estudos nenhuns, e isso fascinava-me! Era a pessoa que quando eu não tinha ninguém com quem falar ou nada para fazer arranjava-me sempre ocupação ou desenvolviamos conversas de horas a fio quando não havia grande movimento na loja. Ensinou-me muitas coisas que mesmo agora eu as aplico no meu dia-a-dia e que também as usei na minha formação como pessoa.
- Foi uma pessoa influente para si? – pergunta Joana.
- Sem dúvida. – responde ele. – São estes pequenos acontecimentos, pessoas ou memórias que nos fazem pensar no verdadeiro rumo que tomamos na nossa vida. Olhamos para trás, para todo o trajecto de definimos, para tudo o que aconteceu e conseguimos ver as coisas de uma outra prespectiva, com outros olhos de ver. Passamos a compreender melhor o porquê, o como e na verdade chegamos a pensar o quão idiotas fomos em algumas situações! Bom, eu sei que isso faz parte do ciclo da vida de toda a gente, mas eu por exemplo demorei bastante tempo a resolver a confusão que ia na minha cabeça, a desembaraçar todos os novêlos de lã e pô-los no lugar, percebe? Acima de tudo uma pessoa tem de saber crescer emocionalmente, não só fisica e psicológicamente. Agora, bem, agora vejo como tudo era simples e fácil, mas na altura não havia mais espaço na minha cabeça para poder pensar assim.
- Então está a dizer que muita coisa no seu passado não devia ter acontecido?
- Não, Joana. Muita coisa no meu passado podia muito bem ter acontecido mas não conteceu. Arrependo-me de muito e não me orgulho de muito mais.
- Eu muitas vezes penso que a minha vida não está a tomar rumo nenhum. Passam sempre as mesmas coisas, as mesmas chatices e as poucas emoções que acontecem não chegam para definir a nossa personalidade. É como a TV, fartam-se de passar anúncios repetidos e a programação é sempre a mesma mas as pessoas não deixam de estarem coladas ao ecran à espera de algo interessante. É como se houvesse apenas um caminho por ir. Isso aborrece-me de morte, mas às vezes tenho medo de enfrentar o mundo. De descobrir aquilo que mais temo e depois não ter forças para ultrapassar os problemas e as dificuldades.
O homem sorriu. – Fico fascinado com a quantidade de coisas que cabem na cabeça de um jovem adolescente. Isso aconteceu comigo. E acredite que foi pior. Mas eu optei por achar todas as forças que eu tinha e que não tinha para poder tomar um rumo e ser feliz.
- Conseguiu?
- Com o tempo e muito esforço, consegui.
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