Joana saiu para o corredor mais leve que nem uma pena. Trazia a medalha e o fio consigo para mostrar a Eve. Poderia ser mais fácil descobrir a sua identidade se aquele colar fosse estudado, tal como a roupa que trazia vestida. O banho servira também para a fazer pensar no que fazer a seguir. O que a levara a acordar, sozinha e desamparada, numa rua a meio de um amanhecer, e sem trazer consigo memória alguma? O que tinha acontecido?
- Uau! Estás sem dúvida com muito melhor aspecto! – Exclamou Eve assobiando quando ambas se cruzaram.
- Achas? Eu não sabia o que escolher para vestir… estava com receio.
- Estás óptima! Já não vestia essas calças há muito tempo porque me ficavam apertadas, mas podes ficar com elas… assentam-te bem. – Disse ela olhando-a melhor. O seu sorriso desvaneceu-se quando Joana abriu a mão e exibiu o colar. – O que é isso?
- É meu… tem uma inicial na frente e uma frase por trás.
Eve pegou nele e examinou-o.
- É bonito. Achas que o teu nome pode estar relacionado com o “J”?
- Hum… é provável. – Disse Joana. - Isto é tudo tão complicado para mim!
- Imagino. O que é isto? “Um gesto para o amor eterno”? – Palavreou Evelyn com dificuldade. Fez uma careta e olhou para Joana. – Consegues decifrar?
- Sim.
- Sim? Falas mais alguma língua?
- Não, acho que não, mas sei o que isso quer dizer.
- Podes eventualmente saber o significado da frase, mas isso não quer dizer que possas saber falar esta língua… como um segundo idioma, sei lá!
Joana respirou fundo e encostou-se à ombreira da porta. – Não sei… E porque raio iria estar isso escrito dessa forma?
- Não sei. Traduz-me.
- Um gesto para o amor eterno. – Respondeu Joana em Inglês.
- Como podes ter essa certeza?
- Não sei. Mas tenho.
- Isto é muito estranho. – Disse Eve olhando uma vez mais para o pequeno objecto.
- A quem o dizes.
- Não te consegues recordar de nada através dele? – Pergunta Eve devolvendo o fio aproveitando para o fazer balançar diante dos seus olhos. – De alguém. De algum lugar…
A rapariga aceita-o na palma da mão e aproxima-o da vista.
- Não… sinto que é apenas um lindo colar, e que me pertence. Sinto que ele me pertence, percebes? De qualquer das maneiras acho que tenho uma ligação especial com ele. – Respondeu ela olhando para o coração de prata. Sorriu levemente e aconchegou-o na sua mão.
- Isto vai ser mais difícil do que eu esperava.
- Conversas de quintal? – Uma voz fez-se ouvir no fundo do corredor. – Também me quero juntar! – Bevin aproxima-se mais. – Que caras são essas?
- As nossas. – Respondeu Evelyn.
Seguindo-a, um cachorrinho castanho saltitou pelo corredor. Ultrapassou o passo da dona e correu à sua volta como se se encontrasse em liberdade ao fim de uma eternidade. Bevin quase tropeçava nele quando este passou como um relâmpago junto dos seus pés. Irrompeu-se em gargalhadas vendo o seu animal feliz exibindo as suas acrobacias diante das três raparigas. Soltou três latidos e abanou o rabo pedindo alguma atenção.
Joana olhava divertida para ele e Bevin, com o seu olhar apaixonado e lunático, pegou-lhe ao colo. O bichinho lambeu-lhe a mão e tentou trepar mais alto pelo seu corpo acima.
- Não te admires se qualquer dia sair em marcha do quarto dela o jardim zoológico inteiro. – Falou Eve de esguelha a Joana.
- Eles parecem gostar muito um do outro.
***
Ivone desceu da carrinha. Com um gesto firme afastou as madeixas de cabelo que o vento empurrou para a cara. Depois ajustou a alça da bolsa ao ombro e olhou para o edifício alto e levemente desgastado pelo tempo. Outra rajada de vento seco e quente fez o seu cabelo voar num remoinho desorganizado.
Aproximava-se mais um dia abrasador. A brisa matinal morta que se arrastava daria lugar ao calor sufocante e consumidor a que aqueles dias já estavam habituados. O Verão chegara quase tão repentinamente como quando um aguaceiro primaveril interrompe um dia luminoso, mas neste ano nem a isso se deveu. A passagem brusca do Inverno rigoroso para o Verão a valer era ainda um facto incompreensível para algumas mentes. Mas para outras, isso tinha uma resposta muito simples, aquecimento global. E em Portugal isso já se fazia sentir muito bem.
António trancava a carrinha e olhava simultaneamente para a fachada do hospital. Não tinha reparado o quanto aquele sítio envelhecera com o passar dos tempos. Depois olhou para Ivone que lhe enfiava um braço no dele conduzindo-o para a entrada. Um casal de braço dado causava sempre muito boa impressão, pensava ela.
***
- Há imensos caminhos por onde eu posso ir nesta conversa, mas eu prefiro ser claro e directo.
- Agradeço. – Falou Carla educadamente sentindo-se cada vez mais contraída e desesperada, por dentro.
Encontrava-se sozinha, numa conversa delicada que podia determinar o futuro da sua filha. Em quem se ia apoiar? Por momentos veio-lhe à cabeça a imagem de Miguel. Era ele que estaria ali ao seu lado, se não tivesse morrido. Ele seria novamente o seu ombro, o seu pilar. Na pior das hipóteses seria ele que a sustentaria se a filha morresse se ele mesmo não tivesse ido também. E se a sua menina morresse? Não havia Miguel. Havia Sofia, mas ela ia sofrer muito também.
– Continue. – Incentivou ela sentindo a cabeça a latejar.
- O que a sua filha teve foi um AVC, não há dúvidas disso. Mas supomos que seja algo mais, porque sabemos que um AVC na idade dela é muito invulgar. Por isso os exames vão continuar até que aprofundemos o diagnóstico. – Falou o médico pacificamente olhando-a nos olhos.
- E como é que ela está?
- Esperemos que fique melhor, ou pelo menos estável. Por enquanto encontra-se em estado de coma superficial, estamos a lutar para que não venha a precisar das máquinas se entrar em coma profundo.
- Oh, meu Deus…
